quarta-feira, 29 de novembro de 2017

SE A BÍBLIA É CONTRÁRIA AO ABORTO POR CONSIDERAR O DIREITO À VIDA, POR QUE, AO MESMO TEMPO, ELA DEFENDE A PENA DE MORTE?




Costumeiramente, o cristão que é favorável à pena de morte como meio punitivo para determinados tipos de crimes é desafiado pelo não-cristão, ou até mesmo por muitos cristãos, a responder a acusação de contradição entre defender pena de morte, mas, ao mesmo tempo, sustentar uma posição contrária ao aborto. Para estes críticos, não faz sentido alguém  ser contrário ao aborto por defender o direito à vida e, ao mesmo tempo, sustentar a pena de morte. A pena capital seria, portanto, na visão desses críticos, a anulação do direito à vida. Logo, quem é contra o aborto por defender a vida, deveria ser contra a pena de morte.
A proposta do texto é analisar a crítica e demostrar a inexistência de contradição nas Escrituras partindo do princípio de que Deus, sendo o fundamento último da realidade, é quem define o que é direito e o que não é, e que, sendo assim, definiu o direito à vida de uma forma que comporte a defesa da pena de morte e a proibição do aborto ao mesmo tempo.

No texto " Considerações teológicas e epistemológicas sobre a pena de morte " , abordei as razões que ao meu ver provam que a Escritura, como ponto de partida epistemológico do sistema cristão, sustenta de maneira racional a pena de morte. Não é preciso, portanto, trazer referências bíblicas, ou fazer uma nova defesa  exaustiva da posição bíblica sobre a pena de morte, pois não é essa a finalidade do presente texto. Cuidaremos apenas de responder a pergunta tema do texto. Sendo assim, recorreremos novamente apenas à questão epistemológica propriamente dita, visto não ser possível compreender o que é direito, como sabemos que temos direitos, ou quem define o que é direito, sem apresentarmos o ponto de partida ou o fundamento desses direitos.

Em primeiro lugar, é preciso entender que, para o cristão, Deus é o fundamento de toda a realidade e, portanto, do conhecimento. Deus, sendo criador de todas as coisas, e sendo maior que toda a realidade, atribui significado à esta realidade criada. Deus, além de ser o criador, é o legislador e domina sobre todas as coisas(Is 46:10). Para o cristão, Deus não é um ser que criou algumas coisas, ou que disputa o domínio com outros poderes. O Deus bíblico é descrito como o Deus que governa todas as coisas, e não há, portanto, poder maior ou igual ao Dele(Is 45:6). Muito pelo contrário, toda a força existente deriva da sustentação direta de Deus. Não há nada que não esteja debaixo de seu domínio e autoridade. Apenas um Deus assim pode ser o fundamento último de toda a realidade. Um deus limitado  não poderia ser o fundamento último de coisa alguma pois, por necessidade lógica, o fundamento da realidade deve ser maior que a realidade. O primeiro princípio de um sistema de pensamento não pode admitir um deus finito pois as garantias da veracidade das proposições resultantes desse primeiro princípio  seriam duvidosas. Um deus finito não pode garantir coisa alguma. A finitude, por definição, limita as garantias de certeza e de verdade. O primeiro princípio de um sistema deve conter em si mesmo a auto-justificação. A sua auto-justificação não depende de uma outra proposição, pois se assim o fosse, ele não mais seria o primeiro princípio. O primeiro princípio deve possuir em si mesmo o conteúdo que o justifica. 

Considerando, portanto, que Deus nas Escrituras definiu em suas leis os direitos dos homens, podemos, à partir disto, entender qual a posição bíblica sobre o direito à vida e como esse direito não contradiz o cristão que defende a pena de morte mas que, ao mesmo tempo, abomina o aborto. Ora, a bíblia deixa evidente o fato de que os homens tem direito à vida quando o assassinato é rigorosamente condenado em Êxodo 20. No entanto, o direito à vida dado aos homens NÃO É UM DIREITO INCONDICIONAL. Este direito está intimamente ligado à determinados deveres. Ou seja, o direito à vida que os homens desfrutam depende diretamente de como estes homens cumprem com seus deveres. Portanto, não existe direito à vida sem o cumprimento de deveres. E quais seriam estes deveres? Ora, um deles é justamente o mandamento dado por Deus para que os homens não assassinem. Não assassinar é um dever, logo, quem descumpre este dever, perde o direito à vida. O direito está sempre associado ao cumprimento de obrigações; Êxodo 20 não é exceção.  Nenhum direito é dissociado de deveres, tal realidade é reconhecida como um fato até pela falha justiça humana. É dito pela nossa constituição, no artigo 5, que os homens tem direito à liberdade, porém, o direito à liberdade NÃO É INCONDICIONAL. O homem que tem o direito à liberdade, não tem a liberdade de agredir o outro, se ele assim o fizer, será preso, perdendo, portanto, o direito à liberdade. Se entende, desta forma, que direitos dependem necessariamente dos deveres. 


Levando em conta a realidade bíblica da condicionalidade do direito à vida, podemos chegar a uma posição racional sobre o motivo do cristão defender a pena de morte e, ao mesmo tempo, ser contrário ao aborto. Ora, enquanto que no caso da aplicação da pena de morte se está retirando a vida de alguém que não tem mais o direito à vida, em casos de aborto a vida da criança é retirada em uma situação onde não houve violação de dever algum por parte da criança que está sendo abortada. Qual dever a criança dentro de um ventre descumpriu que a torne digna de morte? Qual dever ela descumpriu  para que dela se retire o direito à vida? Ademais, a criança no ventre não tem a mínima noção do que são " deveres", como então poderá ter seu direito à vida retirado? É de uma monstruosidade sem tamanho querer comparar um assassino com uma criança inocente. 

A bíblia claramente ensina que a vida começa na concepção(Sl 139:13-16). Os abortistas argumentam que o feto nas primeiras semanas não está totalmente desenvolvido. Mas, e daí? É o menor desenvolvimento que define o que é vida e o que não é? Se sim, então o que dizer de certos deficientes mentais que não tem seu cérebro tão desenvolvido? Eles são menos humanos que os humanos saudáveis? Onde se estabelece o limite para definirmos o que é vida? Nas batidas do coração? Mas o que dizer sobre pessoas que precisam de marca-passo ou de qualquer outro meio externo para possibilitar as batidas normais do coração? Elas são menos humanas? Deixaram de ser seres vivos? Dizem ainda alguns abortistas "mas os fetos não tem consciência" . E daí? Qual consciência tem uma pessoa em coma? Elas são menos humanas? Vamos desligar os aparelhos de todas elas? São problemas como esses que causam confusão nas mentes torpes dos abortistas.  Mas esses ainda não são os maiores problemas. O grande problema é que a ciência não tem autoridade racional para definir o que é vida e o que não é, visto que seu primeiro princípio, isto é, o método empírico é injustificado. Para que a ciência tenha a autoridade de definir o que é vida, ou o que quer que seja, ela, antes de tudo, precisa justificar seu primeiro princípio pelo qual ela fundamenta todas as demais premissas que pronuncia. Mas o empirismo é irracional; alguém que afirma que " evidência" é aquilo que é observável, precisa, antes de tudo, evidenciar que evidência é tudo aquilo que precisa ser observado, do contrário, sua afirmação não é justificada. E mais, o empirista terá de evidenciar sobre a evidência de que evidência é tudo aquilo que é observável. No final, o empirismo seria injustificado, nos levaria a uma regressão infinita e, com ele, cairíamos em ceticismo epistemológico. Sendo assim, o abortista não passa de um assassino irracional, visto que busca defender o aborto através de métodos injustificáveis. Portanto, o primeiro princípio do cristão é a Escritura, não a ciência.

A vida dos cumpridores dos deveres declarados nas leis de Deus deve ser preservada porque assim Deus estabeleceu( Dt 30:16). A grande dificuldade dos cristãos que levantam esses aparentes dilemas é a falta de compreensão acerca de como Deus definiu o direito à vida. Deus nunca definiu o direito à vida de forma incondicional; compreendendo assim, o dilema é solucionado. Os abortistas são assassinos em potencial porque retiram a vida de alguém que tem o direito à vida. Já o estado, quando retira a vida de um assassino mediante a pena de morte, não comete assassinato algum, pois o assassino não tem mais o direito à vida. Isso significa dizer que qualquer um pode sair por aí retirando a vida de assassinos? Não, apenas o estado deve cuidar de pôr em prática a pena capital. Apenas em um contexto de legítima defesa estamos autorizados, em último caso, a retirar a vida de alguém que ameaça nossa existência. Mas isso já foi respondido no texto "Considerações teológicas e epistemológicas sobre a pena de morte". Neste mesmo texto, respondo a falácia de que a pena de morte equivale a assassinato.

Desta forma, podemos concluir afirmando que não existe dilema algum entre ser contrário ao aborto considerando o direito à vida e, ao mesmo tempo, defender a pena de morte. E que Deus, sendo o fundamento de tudo, definiu o direito à vida como um direito condicional e que, sendo assim, a condicionalidade do direito é uma resposta suficiente que soluciona o falso dilema levantado. 

Soli Deo Gloria

Álvaro Rodrigues

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